segunda-feira, 4 de novembro de 2013

DE HIPO A SUPER


Olá pessoal!
Atendendo a pedidos, cá estou eu para contar mais algumas coisas para vocês.
Gostaram desta nova foto que tiraram de mim? Pois é, me pegaram de surpresa. Estava brincando de fazer buracos em meu cobertor, quando enfiei a cabeça em um deles. Até tinha me esquecido do negócio pendurado no meu pescoço... Não sei porque acharam-me tão engraçado.... Assim que o pai abriu a porta do quintal e me viu desse jeito, deu meia-volta e foi chamar os outros para verem também. Chegaram mãe, filha, e a surpresa foi a mesma, todos admirados comigo. Pediram para a filha correr e pegar a câmera. Logo depois, lá estava ela de volta com a máquina na mão. Aí então queriam que eu me apoiasse na cerca. Mas foi difícil de eu me erguer, pois pisava e enroscava no cobertor. Quando enfim consegui, veio aquela luz na minha cara, e pronto! Momento registrado. Gostaram?
Não sei porque tanta coisa por causa de um cobertor pendurado no pescoço. Falaram em super, super-homem, supercão, capa, voar e outras baboseiras. Não me sentia nada especial ou super só porque carregava aquele trapo vermelho comigo... Na verdade, senti-me forte, sim, por ter transformado o cobertor em um trapo todo esburacado. Somente isso. Mas é justamente sobre isto que quero comentar com vocês...
Sabe, de um tempo para cá estão me dando uns lanchinhos que, eu acho, têm a ver com esta força a mais que percebo ultimamente. Estava desconfiado que dentro deles tinha alguma coisa. Até que um dia, de tanta fome e pressa de comer, a mordida acabou saindo meio torta e o lanche abriu-se, deixando cair metade de um comprimido branco. Segredo descoberto! Desta primeira vez, não quis nem saber, meti o comprimido pro fundo da goela. Mas depois disto, quando acontece do remédio escapar, deixo que a mãe coloque-o dentro de um novo lanchinho, pois eu não sou bobo, assim consigo mais um petisco.
Então, como eu disse, esta disposição a mais que ando sentindo deve ter a ver com esses tais comprimidos. Antes deles eu me cansava à toa, o corpo pesava demais. Quando o pai brincava de bolinha comigo, eu ia pegar daquele jeito, arrastando as patas pelo quintal. E na volta era ainda pior, com a bola na boca, a cada passo que eu dava, ele parecia mais longe, esperando minha chegada, que não chegava nunca... Mas agora estou bem diferente, nada de moleza. Vou e volto bem mais rápido, uma maior facilidade em me movimentar, tudo ficou mais fácil e mais leve. Até eu devo ter ficado mais leve, pois acho que perdi uns quilinhos.
Um tempo antes de começarem a me dar os tais lanchinhos, levaram-me outra vez para aquele hospital. Não gosto nada de ir para lá. Sempre penso que vão me deixar, como da primeira vez, quando fiquei internado. Não quero mais que me abandonem, fiquei traumatizado. Então não vou contar nada sobre o hospital. Já estou cansado disso tudo. Mas só toquei neste assunto para comentar que, mal entrei no consultório, o veterinário disse que eu tenho... Como é mesmo o nome? Hipo... Hipotireoidismo, eu acho. Disse também que, com o remédio, eu ficaria mais esperto, com “outra cara”, foi bem assim que ele falou. E acertou em cheio, pois me sinto mais animado, agitado. Parece que estou voltando aos velhos tempos, quando era mais jovem, com mais energia. E pensar que já achavam que eu estava mais calmo, dorminhoco e gordo por causa da idade. Onde já se viu? Querem me deixar velho antes do tempo.
Bom pessoal, vou parando por aqui. Desculpe interromper assim meio que de repente, mas é que deve estar chegando a hora de mais um lanchinho e eu tenho que ficar a postos, esperando. Um abração! Tchau!

domingo, 11 de agosto de 2013

Eu, Bob


Tudo começou em uma sexta-feira. Não comi nada da ração. Também não bebi nada. Jejum completo.
Somos em seis e moramos em uma casa espaçosa. O pai, a mãe, o filho, a filha (todos estes humanos), uma porquinha-da índia e eu, um cachorro. Eu disse que a casa é espaçosa, mas só conheço parte dela, pois não subo escadas. Porém, mesmo sem escalar aqueles medonhos e imprevisíveis degraus, mesmo sem saber o que tem lá pra cima, dá pra deduzir que a residência é bem grande. O lugar que ocupo, o canil, também é amplo. Enquanto muitos cães, em outras casas, ficam apertados em um canto qualquer, o meu espaço é bastante privilegiado. Casa de blocos com telhas onduladas, quintal cimentado entre os canteiros, cerca de madeira com grade de arame, portãozinho...
Então, como estava dizendo, naquela sexta-feira eu não comi e nem bebi nada. Estava tudo travado. Também as minhas necessidades ficaram prejudicadas. Quanto à parte sólida, nada fiz. E a parte líquida, logo de início comecei a urinar bem menos. Fazia força, fazia pouco, e sempre com vontade. Espalhei pingos de xixi por todo o quintal. Estava doendo também. Tinha alguma coisa errada com as minhas “partes baixas”. Só perceberam o meu jejum absoluto quando já era tarde da noite, pois acho que aquele foi um dia corrido para a família... Toda noite o pai costuma recolher meu cocô e jogar água no xixi, mas naquela sexta-feira ele não limpou. Quando entrou no quintal, foi ver as tigelas e, ao notar que estavam cheias, exclamou: “Nossa Bob, você não comeu nada!”. Saiu com a cara preocupada.
No dia seguinte apareceu a veterinária. Quando ouviu o que a mãe e o pai disseram a meu respeito, que eu não havia comido e nem bebido nada, que estava fazendo xixi de pouquinho em pouquinho e, principalmente, quando viu a força que eu fiz para urinar, ela falou que era infecção urinária. Disse que me passaria remédio e, se eu não melhorasse, teriam que me levar para fazer um tal de ultrassom.
Neste mesmo dia começaram a me dar remédio. Mas não deu muito certo não. Primeiro tentaram colocar o comprimido dentro de uma coisa que parecia, no gosto, a ração que comia todo dia. Na aparência, era bem maior que um grão de ração. Estava na cara que tinha algo dentro. Até aí não havia problema algum, pois se eu não estivesse doente, engoliria o negócio num instante. Sempre fui de comer bem e de uma vez só. Porém naqueles dias minha fome acabou. Então eles colocaram o remédio em coisas gostosas, para me atrair. Começou com quibe, mas acabei aprendendo a separar o remédio e comer só a carne, então partiram para o frango. Com ele ficava muito mais difícil de separar, porque o danado é gostoso demais. Quando a gente (força de expressão) vai ver, já engoliu...
No domingo estava um pouco melhor. Pouca coisa. Comi um tantinho mais que nada. Quanto a beber, era nada mesmo, pois estava cismado com a água. Se estava dolorido e difícil de ela sair, pra que colocar mais água pra dentro?
Na terça-feira travou total. Não saía nada, nem gotinhas. E a dor, então, aumentou ainda mais. No final da tarde, colocaram-me no quintal lateral. Logo percebi que estavam esperando o pai. A casa estava cheia. A vó, a tia e a prima vieram me ver. Estavam todos preocupados comigo.
Já fazia um bom tempo que havia escurecido, quando o pai chegou, apressado. Mal entrou e já foi me colocando a correia na coleira. Abriu a porta do meio e então apareceu o porta-malas aberto do carro. Oh, não! A última vez que entrei aí dentro foi... Mas não deu nem tempo de lembrar direito daquele apuro danado, pois o pai já foi me pegando e colocando lá pra dentro. Sou um cachorro de médio para grande porte e também pesado. Acho que não foi fácil pra ele encarar o peso. Porém foi melhor assim, meio que no susto. Se me deixassem parar para pensar, aí então eu travaria e quero ver alguém me colocar no carro...
Como comecei a dizer, daquela última vez que havia entrado no porta-malas (que também foi a primeira), foi simplesmente terrível. Levaram-me para a casa da tia. Acho que havia alguma festa por lá, pois ouvi o barulho. Pelo que percebi era a festa da minha prima, uma cachorra pequenina e bem peluda. Mas quem disse que eu saí de lá de dentro? Quando eu subi no carro não percebi a altura estratosférica em que fui me meter... (quem disse que cachorro não é inteligente o bastante para utilizar a palavra “estratosférica”?) Fiquei a festa toda no porta-malas. Com dó de mim, vieram me dar o bolo de aniversário. Estava bom pra cachorro (no sentido figurado e no real também...). Disseram que era só eu descer que tinha mais para mim. Mas eu não quis nem saber. Só fui descer em casa, depois de muito sofrimento. Foi tanta coisa que tentaram pra me tirar dali... Mas não vou contar porque tudo isso, todos estes acontecimentos pertencem a outra estória. Então fica para outra, pois desta vez não me levariam para festa nenhuma. Muito pelo contrário.
Depois de um trajeto curto, mais perto que a casa da tia, o carro estacionou. O pai e a mãe agiram rápido. Botaram-me pra fora, meio empurrado, meio carregado. Receavam que o meu medo aumentasse, pois aí, com certeza, dificultaria muito as coisas. Já desci preso pela coleira e então percebi que estava em um pequeno estacionamento. Logo adiante havia a entrada do prédio, e foi para lá que me levaram. Assim que entramos, eis que aconteceu o meu primeiro contato com um elevador. A mãe apertou um botão na parede e abriu-se uma porta diante de nós. Não tenho medo de dizer, sou um cachorro medroso. Acho que já deu para perceber. Mas outra vez o pai foi mais rápido que o meu medo. Puxou-me pela coleira e de repente estava naquela casinha. Na verdade, um “casão”, bem mais alta que a minha. Também era mais espaçosa. Outro botão apertado e a porta fechou-se. Ficamos um tempinho lá dentro. Deu umas balançadas e, depois de um pequeno tranco, a porta abriu novamente. Ao sairmos, nos dividimos. A mãe ficou em um balcão e nós seguimos adiante, onde havia várias cadeiras, e lá ficamos. O pai sentado em uma delas e eu ao seu lado.
Aquilo era um hospital. Não passei bons momentos nesse lugar. Várias vezes ali voltei, mas nenhuma delas foi tão ruim quanto esta primeira. Pensei que nunca mais sairia dali. Começou com uma consulta normal. Mas para mim não foi algo tão normal assim. Estava acostumado com consultas feitas em casa, sem precisar subir em mesas enormes. Carregaram-me lá pra cima e me seguraram, enquanto a veterinária me examinava. Depois de me apalpar, disse que eu estava com dor. Até aí, nenhuma grande descoberta. Se eu pudesse falar, da minha dor era a primeira coisa que falaria. Após as inconvenientes invasões daquele abusado exame, por cima, cutucando o meu ouvido, por baixo, enfiando-me uma coisa que depois soube que se tratava de um instrumento chamado termômetro, finalmente me tiraram daquela altura gigantesca. Tenho medo de altura, sim. É um dos meus maiores medos. Não gosto de subir em nada que esteja acima do chão, principalmente se é algo que não conheço. Naquela mesma primeira noite de hospital, colocaram-me diante de uma balança. Não era muito alta. Para falar a verdade, já havia, em minhas caminhadas, subido degraus maiores na calçada. Mas se não fosse o pai ter aplicado novamente a técnica do “meio empurrado, meio carregado”, com certeza eu lá estaria até agora, estacionado em frente da balança.
Depois de me pesarem, levaram-me de volta ao consultório. Então a doutora disse que eu teria que fazer um tal de Raio X. Eta exame danado de ruim! Primeiro porque não pude entrar com o pai e nem com a mãe, que ficaram lá fora, esperando. Dentro de um lugar meio escuro, apertaram-me de tudo quanto é lado. Seguraram-me de um jeito que eu fiquei travado. Acho até que me prenderam com uns cintos, mas eu não tenho certeza. Só sei que deu um desespero tremendo. Ainda bem que durou pouco!
Outra vez no consultório, a veterinária mostrou-nos o resultado. Pegou a foto que tiraram de dentro de mim e, colocando-a sobre uma luz que acendeu na parede, apontou para várias pedras e foi contando... Disse que havia umas treze na bexiga. “Ah! Então é por isso que eu estou deste jeito, com essa dor ferrada”, pensei. “Poxa! Como elas foram parar aí? Não me lembro de ter comido pedra... Sabonete eu até comi (depois vomitei; não foi boa coisa), mas pedra, acho que não”.
Quando a doutora disse a palavra “cirurgia”, notei que as expressões do pai e da mãe foram cobertas por um véu de apreensão... Todo mundo sabe que cachorro é um bicho sensível, que percebe facilmente os sentimentos dos seres humanos. O pai me olhava com uma cara de dó que não precisava nem dizer nada. O rosto da mãe era uma preocupação só.
A última vez que vi alguém da família naquela primeira noite de hospital foi quando o pai se despediu de mim. Colocaram-me em uma gaiola pequena e ele, do lado de fora, repetiu um milhão de vezes que tudo ia ficar bem e que no dia seguinte voltaria para me ver. Mas sua cara estava preocupada e dizia muitas outras coisas...
Esta estória está ficando um tanto longa. Acho que sou um cão bastante abusado ao tentar prender a atenção dos humanos com uma narração tão prolongada. O que as pessoas esperam de um cachorro são reações rápidas, coisas breves, como, por exemplo, pegar bolinha ou abanar o rabo contente quando o dono chega. Assim sendo, vou procurar resumir os acontecimentos, passando somente pelos principais, aqueles que eu não posso deixar de contar.
Quanto à cirurgia, recuperação e aqueles intermináveis dias de hospital, não tenho quase nada a mencionar. Cirurgia, ninguém se lembra. Homem, cachorro, qualquer animal, todo mundo apaga. E depois, a prisão. Eu e outros cães, todos encarcerados em cubículos engradados, empilhados uns sobre os outros. Não posso dizer que é desumano porque o termo não se aplica à minha espécie. E ainda ouvi, de um colega de cela ao lado, que estávamos em um hospital de primeira linha, bem melhor que muitos hospitais dos humanos. Acho que os homens têm muito a melhorar nesta área... Está certo que havia alguns ali comigo que mal conseguiam levantar a pata. Para estes, tanto fazia estar preso ou não. Mas havia outros, como eu, que estavam bem e que queriam sair logo dali. Foi por isso que eu fiquei muito bravo quando, no dia seguinte após a cirurgia, apareceu a mãe. Achei que me traria de volta, mas logo percebi que estava enganado. Fiquei revoltado. Quando foi me fazer um carinho na cabeça, não aguentei. Quase peguei a mão dela com uma abocanhada. É lógico que não machuquei, não seria capaz disso. Só queria dar um susto.
Finalmente acabei saindo. Ufa, não estava aguentando mais! Não que o tratamento fosse ruim. Pelo contrário. Cuidaram bem de mim, levaram-me até passear, dar uma volta. O problema é que hospital é lugar nada agradável... Quando o doutor estava dando a minha alta, com todos nós no consultório, disse que eu era um cachorro tranquilo e bonzinho. Gostei do elogio. Vi que o pai e a mãe também gostaram. Mas notei, não conseguiram esconder perante a percepção aguçada de um cão, que ficaram surpresos. Acho que não acreditaram no “tranquilo”, sabem que eu não sou bem assim... Mas é que quando a gente está fora de casa, tenta se comportar melhor. Enfim, parece que consegui enganar bem...
Ficar doente, passar por dificuldades de saúde, como eu passei, tem suas vantagens. Por vários dias fiquei no quintal lateral, onde a mãe estende a roupa. Junto a este quintal, há um corredor que vai até à porta do meio, passagem para a garagem, e até à porta da sala também. Colocaram uma madeira para impedir que eu chegasse nestas portas, e assim ganhei mais este corredor dentro do meu espaço autorizado. Era uma boa área para andar e xeretar e, principalmente, ficava bem ao lado da família. Dava até para ver a cozinha de perto, meu lugar preferido, de onde partem os cheiros mais incríveis. De noite me colocavam para dentro, em outro corredor, que passa ao lado da cozinha.
Logo que cheguei do hospital, percebi que a ração mudou. Não gostei nada do sabor. Também não estava com muita fome. Acho que era por causa da tal cirurgia. Bem que poderiam me dar aquelas coisas que eles comiam. Meu olfato de cão se maravilhava com aquele festival de odores. E havia também um outro festival, não tão agradável quanto este. Lá embaixo, onde abriram e tiraram as minhas pedras, estava pingando algo... A doutora disse que era normal, iria pingar mesmo, pois o corte estaria purgando, sarando. Mas o problema é que não estava sarando não. Comecei a sentir um peso no saco (você acha que um cachorro utilizaria a palavra escroto, saco escrotal ou testículos? Lógico que não! Conheço todos estes termos, mas não pegaria bem utilizá-los. Afinal, um vira-lata não tem nada disso. Tem saco mesmo!). O dito cujo ficou inchado pra caramba, parecia que iria estourar! Quem primeiro percebeu esta minha anomalia foi a filha...
E lá vamos nós, novamente, para o hospital. Toda noite me levavam para lá. Uma injeção por dia. Acho que foi umas sete vezes. Nesse vai-e-vem, acabei aprendendo a andar de carro. No final, quando era para sair, já estava pulando para fora do porta-malas!
Destes “passeios” para levar a minha picada diária, tenho duas coisas a comentar. A primeira é que o medo que tenho dos meus semelhantes continuou o mesmo, ou até piorou. Em uma das ocasiões em que aguardava minha vez, ao lado do pai e da mãe, que estavam sentados em duas das muitas cadeiras da área de espera, ouvimos alguém chamar pelo meu nome. A gente se sente importante. Chamam os animais, e não as pessoas. Então o pai levantou-se e puxou-me pela correia da coleira. Naquela noite havia muitos cães no hospital e isso me estressa. A maioria deles late por qualquer coisa. Quando estávamos bem em frente das fileiras de cadeiras, expostos para toda aquela plateia de cachorros e seus respectivos donos, os latidos aumentaram sendo que um deles, em particular, me fez tremer na base. Sentei e travei totalmente. Não conseguia mover um músculo sequer. Mas foi tudo muito rápido. O pai estava atento e não deixou a minha travada ganhar força. Já foi logo puxando e até me arrastou um pouco. Foi-que-foi que acabou conseguindo fazer com que eu, de alguma maneira, chegasse ao consultório. Fico chateado com esta minha reação, percebo que o pai se envergonha bastante ao ver um cachorrão do meu tamanho, paralisado pelo pânico quando ouve algum latido mais alto ou estridente, mesmo que venha do mais minúsculo cão. Mas o que eu posso fazer? Não consigo controlar. É mais forte que eu...
A segunda coisa que fiquei de contar é sobre os nomes de cachorro que a gente ouve chamar lá no hospital. Veja só: Cocada. Outro: Coca-Cola. Esse é pior: Gonçalves. O enfermeiro até deixou escapar uma risadinha quando foi chamar esse nome. O pessoal inventa cada uma!
Ah, tem mais outra coisa que eu não posso esquecer de contar sobre esse período em que estava me recuperando. Aconteceu algo maravilhoso naqueles dias. Deixaram de me dar a ração, que eu não estava nada disposto a comer, para colocar, no seu lugar, canja! Santa canja! Não dava nem para acreditar, era simplesmente delicioso! Metia a cara no potinho e papava tudo de uma vez, sem tirar o focinho de lá de dentro. A ideia de me alimentar assim tão generosamente surgiu devido ao fato de que eu havia perdido um peso considerável. Quem pensou nesta divina solução foi a veterinária do hospital. Até que ela é legalzinha. Quando me levavam para tomar as injeções, em uma das vezes ela chegou até a me chamar de príncipe. Confesso que a primeira impressão que tive a seu respeito não foi das melhores. De vez em quando cismo com alguma pessoa. Mas acho que desta vez me enganei. Até me arrependo da avançada que lhe dei. Também, logo de começo já foi querendo passar a mão na minha cabeça. É lógico que eu não machuquei. Sou da paz. Um grunhido e uma ameaçada de abocanhada básica, só para marcar o meu território. Coisa de animal mesmo. Acho que foi por isso que ela disse para o pai e para a mãe que eu sou traiçoeiro...
É... Assim está bom... Pra quem não queria se alongar muito... Dei uma de cachorro abusado mesmo! Mas é que não deu para resumir, bem que eu tentei, mas não dava. Tem coisa que a gente não pode dizer assim por cima... Sabe, gostei deste negócio de contar coisas. Bem que poderia dar um livro! Não tem aquele livro que acabou virando filme? Como é mesmo o nome? “Marley e eu”, acho que é isso. Naquele, quem conta a estória é o dono do cão. No meu, é o próprio cão. Bem melhor assim, não acha? “Eu, Bob”, ficou bom?

domingo, 28 de abril de 2013

CONTADOR DE VISITAS

Posso escrever sobre o que está acontecendo agora. O trem está chegando. Acabei de entrar na composição. Isto é a mais absoluta verdade. E quando se escreve verdades, o leitor percebe. Acredito que a escrita carrega muito mais do que simples palavras, que é possível transferir o contexto do ambiente no qual o escritor está vivendo no exato momento em que está redigindo. Por exemplo, agora estou sentado no banco, papel e caneta na mão, olhando o entra e sai pela porta do vagão. O trem parte da estação e eu olho o escuro da noite pela janela.
Mas também i... A caneta falhou. Durante a caminhada entre a estação de trem e a de metrô, coloquei a dita cuja no bolso dianteiro esquerdo da calça e, quando fui retomar estas despretensiosas linhas, eis que ela já não escrevia mais nada. Na linha amarela, entre as estações Pinheiros e Paulista, fiquei a lutar com minha caneta preta. Nada. Acabei descobrindo um pequeno vazamento. Na longa conexão entre a Paulista e a Consolação, insistia em tentar tirar a tampinha, que mais parecia estar soldada ao corpo da caneta. Nada. Quase a joguei em alguma lixeira. Ainda bem que não o fiz, pois senão agora, na espera que costuma ser longa, aguardando o demorado ônibus... Acabei pegando outro. O Circular via Goiás passou por mim, não era ponto dele, mas acabou parando quando fiz sinal. O motorista foi legal, quebrou o galho. Deixei aquele que provavelmente estaria esperando até agora, para entrar noutro que dá uma volta danada. Mas acho que no final acabarei chegando mais cedo...
Não sei se cheguei mais cedo. Acho que o tempo foi mais ou menos igual. Com relação ao tempo, só sei que está passando muito rápido. Passou o fim de semana num instante. Hoje é segunda e aquela sexta-feira em que eu fiz hora extra ficou para trás. Para trás também ficaram as linhas que descreviam a volta do serviço, a caneta que falhou, o ônibus. Revisando agora o que já foi escrito, devo dizer algo que não foi dito. A caneta, a tal caneta preta, voltou a funcionar. E é justamente com ela que escrevo neste momento, sentado em um banco de madeira, com o maravilhoso sol da manhã banhando o meu corpo. Mas é hora de largar este paraíso. O horário de entrar para o trabalho está se aproximando.
Dois dias depois e cá estou eu, novamente no mesmo banco, novamente no mesmo sol. O bom desta época do ano é que o tempo é firme, chove muito pouco (apesar de que chover é bom, faz bem para a natureza, para as plantas), e as tardes, o pôr-do-sol nestes meses de abril, maio, é muito bonito. Cada entardecer revela um espetáculo de cores, brilhos e contrastes. Uma tela de um Grande Artista a cada fim do dia. Mas eu não quero falar de fim do dia. Quero, isto sim, falar de começo. Dizer que não são somente os humanos que apreciam tomar o revigorante sol da manhã. Os insetos também sabem desfrutar destes maravilhosos momentos. Sexta-feira passada, neste mesmo banco, eis que encontrei uma mosca, imóvel sobre o paralelepípedo. Somente saía da imobilidade para esfregar as patas traseiras, em sua ginástica típica. Com certeza curtia o banho de raios solares. Tenho que contar também a respeito de uma abelha, do que nela observei naquela mesma manhã de sexta-feira. Porém agora tenho que interromper, pois as atividades do dia me chamam. Chega de moleza, vamos ao trabalho!
Outra vez estou a esquentar os ossos. Olho para a esquerda, em um ponto vazio no espaço. Era aí que ela estava, exibindo a sua destreza. Paralisada no ar. Paralisada não é bem o termo exato a usar, pois que a abelha deve bater as asas vigorosamente, a fim de conseguir uma estabilidade tão grande no voo. E olha que a estabilidade daquele inserto era notável. Eu, sentado em um banco de verdade, sob o gostoso sol da manhã e, ao meu lado, ela também aproveitava. De vez em quando, esticava as pernas, como se estivesse baixando o trem de pouso.  Depois encolhia novamente. Sentada no nada, em uma cadeira imaginária, ou talvez um banco, para me fazer companhia. Mas ela não conseguia ficar muito tempo parada. Repentinamente ia para frente. Depois voltava para trás. Admirável. Como se fosse um helicóptero, pilotado com rapidez e maestria. Ou quem sabe uma minúscula nave espacial. Cheguei a pensar em diminutos seres extraterrestres, a espionar o nosso mundo. Pensamento estúpido. Mas não deixa de ser fantástico e interessante.
Espionando como vivem os seres humanos. Como tomam o sol da manhã em bancos de madeira, como fazem hora extra após o expediente e depois tentam contar a viagem de volta de trem e outras conduções, lutando contra uma caneta preta que insiste em não funcionar, como insistem em escrever textos e colocá-los em blogues, para depois torcer afoitamente, esperando que o contador de visitas salte para números elevados, doce ilusão inatingível.
Dei um tapa na abelha, na nave espacial miniatura, com seus pequeninos e intrometidos espiões. Mentira, não dei não. Mas vou ficar espiando o contador de visitas, isso eu vou.

quarta-feira, 27 de março de 2013

ESPANHÓIS E COMUNISTAS

Viro a esquina em direção ao barbeiro e digo para mim mesmo: “Em busca de ideia para uma crônica...”.
Antes de dobrar a próxima esquina, ouço o comentário de um senhor ao olhar as manchetes na lateral de uma banca de jornal: “Esse papa é simpático!”. Não, daqui não sai crônica. Na verdade, pode até sair... Mas não quero fazer.
Entro no barbeiro. Sr. Lauro, tradição, mobiliário antigo, rádio com música clássica... Aqui daria uma boa crônica. Mas fica para outra vez, talvez...
Um na cadeira, cortando o cabelo. Outro sentado, esperando. Sento e, na cadeira ao lado, procuro uma parte do jornal para ler. Primeira página do Diário do Grande ABC. Processamento de lixo reciclável, preço da Zona Azul, desafios dos times de futebol da região. O São Caetano tá tão mal que nem tem nada dele. Notícia de jornal pode puxar um bom texto. Mas não, não é isso que eu estou buscando.
Sai o sujeito da cadeira do barbeiro, outro toma o seu lugar. Agora eu sou o próximo. E já tem gente atrás de mim, está ficando cheio...
De repente começo a ouvir o Sr. Lauro dizer: “... Acho que vocês são parentes. Ele é filho do Seu Francisco...”. Estas palavras são dirigidas à pessoa que está cortando o cabelo, mas fazem referência à minha pessoa. Então levanto-me e digo: “Eu sou filho do Seu Francisco...”. Pronto! O barbeiro, profundo conhecedor da família Moreno, acaba de fazer a ligação entre dois parentes distantes. E, de quebra, dá assunto para a crônica. Agora vai! Recordações, origens familiares, parentes conhecidos em comum, tudo isto vale a pena registrar... E que fique aqui registrado: a minha crônica está começando agora!
Após os primeiros momentos de “filho de quem”, “neto de quem”, “irmão de quem” e outros “quem” mais, acabamos por situar o nosso grau de parentesco. Isto depois de várias confirmações e repetições, coisa comum em situações deste tipo. Para facilitar ao leitor a navegação pela árvore genealógica, peço para que imagine, nos idos do começo do século passado, dois irmãos e imigrantes espanhóis. Cada um deles constitui sua própria família. Um deles, Francisco, tem seu segundo filho, também Francisco, que é o meu pai. O outro irmão, Antonio, tem uma filha chamada Josefa, mãe de outro Antonio, que é justamente quem está conversando comigo. Pensando bem, acho que não somos parentes distantes... Ou pelo menos nem tanto.
Vamos falando de familiares conhecidos, tecendo nossos comentários:

“(...) O Milton tinha um coração muito bom. Entrou na bebida e nas drogas, se envolveu com maus elementos. Mas tinha um coração muito bom. Foi bom pra todo mundo, menos para ele mesmo (...) O Vicente vendia um bar pra comprar outro. Ele teve um no final da Maranhão, na esquina. Também chegou a ter em frente à GM, na Tiradentes. O Seu Lauro disse que ele vinha de sábado, bem cedo, cortar o cabelo... É, depois que o filho morreu, ele caiu bastante (...) O Vande morreu cedo. Deu uma melhorada por um tempo, ficou uns dois ou três anos bom, depois... Essa doença é (...) O Antonio (mais um Antonio na família), ele queria matar o cara que viciou o filho. Ele foi vereador, pelo Partido Comunista, duas vezes (...) ”.


Para o leitor, estas recordações são recortes que talvez não formem uma figura coerente. Pode haver confusão entre os personagens e as lacunas no texto, é possível que elas esvaziem o pouco conteúdo que consigam apreender. Mas não tem problema, pois sei que fios de vida passam através destas linhas escritas. São fios que, de uma maneira ou de outra, acabam participando de todas as famílias...
O papo começa com o Antonio sentado na cadeira do barbeiro e eu em pé, ao seu lado. Depois as posições são trocadas e o papo continua. E prossegue no bar ao lado, acompanhado de um cafezinho. Ele me conta do seu avô comunista, irmão de meu avô por parte de pai. Diz que ele recebia revista do partido, diretamente da Rússia. E que quando chegava a “batida”, ele se escondia no forro da casa. Então falo do meu avô por parte de mãe, também comunista, e do seu trágico fim, assassinado por anticomunistas em uma questão de divisa de terras que foi criada para acobertar a real motivação política do crime. E, com relação à política atual, compartilhamos nossa repulsa endereçada ao ex-prefeito da cidade...
Ele me fala de um tal Chevrolet 1928, que era do Lourenço. “Tio Lourenço” surge em minha mente como um nome presente nas estórias da família. O Chevrolet, nunca o vi, mas ao ouvi-lo contar como uma recordação tão viva, chego até a ver o brilho de sua lanterna...
No mesmo dia, vou à casa dos meus pais para falar a novidade. Como meu pai não está, exponho o acontecido somente para minha mãe. Ela ouviu com atenção e alegria. Raízes familiares fazem bem para todo mundo, principalmente quando vamos ficando mais velhos...
E, para finalizar esta crônica, fico sabendo de uma relação que liga os nossos avôs... Depois de ouvir-me, minha mãe diz que o pai dela e o avô do parente encontrado no barbeiro eram amigos, encontravam-se... Então fico a imaginar os dois, nas primeiras décadas do século vinte, interior paulista, reunidos com outros companheiros de ideal, na esperança de, através do comunismo, mudar o mundo...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

MEU MODO DE VER O MUNDO – PARTE 6 LEAGUE OF LEGENDS

Fui no “Campus Party”. Trata-se de um evento direcionado aos fanáticos em videogame. Não sou fanático, mas devo confessar que meu filho, com seus 13 anos, não consegue pensar em outra coisa. Então, a motivação inicial que me fez enfrentar este evento foi a de estar junto ao meu garoto. Não basta ser pai, tem que participar.
Adiantamos o almoço do sábado e saímos pouco depois do meio-dia. No carro, eu mais parecia motorista de táxi, pois o banco da frente estava vazio. Lá atrás, o meu filho e um amigo seu, logicamente também ligadão em games. Entusiasmados, conversavam animadamente, tentando adivinhar quais seriam as promoções que estariam em jogo. Inventavam que determinada empresa daria um computador último tipo, sonho de consumo para qualquer gamer. Seria tudo muito fácil... Ei, você aí! Você ganhou um computador da marca tal, modelo tal... Dariam também placas de vídeo, tudo do bom e do melhor. E assim por diante... Acho que sabiam que estavam exagerando, mas tenho certeza que desejavam, do fundo dos seus cibernéticos corações, que todas estas inocentes imaginações se concretizassem...
Trinta reais de estacionamento. Um roubo. No Anhembi é assim mesmo, nenhuma novidade. Mas a surpresa veio na entrada: catracas liberadas. Na verdade, não foi surpresa. Meu filho já havia dito que o evento seria gratuito. Porém, uma coisa é saber e a outra é viver, sentir a experiência de passar livre e gratuitamente por uma catraca que, muitas outras vezes, só nos permitiu a passagem após a compra do ingresso: outro roubo.
Lá dentro, a quantidade de estandes não era muito grande. Logo foi possível identificar o principal motivo. O mapa do Campus Party indicava que metade do pavilhão estava tomada pelo acampamento. Não conseguimos ver esta parte, mas acredito que seria uma cena totalmente pitoresca olhar, de cima, aquele mar de barracas...
Nenhum dos estandes prendia a atenção do meu filho e seu amigo. Foram seguindo em frente, sabiam o que procuravam. Até que um grande telão apareceu, cercado por uma multidão de jovens espectadores, boa parte deles em uma arquibancada, outros sentados em cadeiras formando uma enorme plateia e, ainda, em volta, havia muitos em pé... Foi entre estes em pé que, inicialmente, ficamos.
A vibração é intensa. Em duas grandes mesas, montadas em um palco e voltadas para o público, espalham-se os dez jogadores, cinco de cada equipe. Cada um por trás do seu respectivo monitor, teclado e mouse. Fones de ouvido e microfones posicionados, concentração total. No telão, mais uma batalha épica de LOL – League of Legends, o jogo mais jogado ao redor de todo o planeta. Esta partida, uma das semifinais de um torneio mundial, está sendo transmitida pela internet. Centenas de milhares de apaixonados torcedores acompanham cada detalhe...
AEEEEEEÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ!!!!!!!!!
A torcida grita em uníssono. Emociono-me. Coisa boba, mas emociono-me. Multidões com objetivos comuns mexem comigo.
Tento acompanhar o jogo. São muitas coisas que acontecem simultaneamente. Não consigo. É como ver uma pancadaria geral entre dois times inteiros de futebol e ter que captar e entender cada lance. Há um painel central, que focaliza em detalhe apenas uma área do campo de batalha que, por sua vez, aparece totalmente no canto inferior direito, somente com as informações principais. Na parte inferior central constam dados do desempenho de cada um dos dez jogadores, com vários indicadores. Dependendo do personagem que se escolhe para jogar, variam-se muito os tipos de golpe. É uma chuva de informações! De repente ouço um “UUUUUU” gritado pela torcida atenta. Deve ter sido algum lance que passou perto, alguma coisa que por pouco não aconteceu. Só que eu não consegui ver nada! Para mim, mais parece explosões de fogos de artifício... Sou do tempo do Atari! Antes disso, brinquei com o tal Telejogo Philco! Duas barrinhas eram os jogadores e, no meio deles, uma bola que na verdade era um pequeno quadrado... Foi uma evolução fenomenal, de um lado a outro do universo. Não consegui me adaptar. É muita coisa pra processar, muitos botões ou teclas pra apertar. Não dá pra acreditar que a molecada faz tudo isso e ainda bate-papo, escrevendo mensagens para os outros jogadores em mais um setor que divide a tela já tão retalhada... Isso sem contar que também se comunicam verbalmente, com fones e microfones a postos! É demais! Mas pelo menos neste torneio mundial eles não estão digitando aquelas coisas cifradas entre si. A comunicação entre eles é apenas verbal. Lá no palco, sentado entre dois outros colegas de equipe, vejo o jovem coreano, pouco mais que uma criança, olhos pregados no monitor, a falar no microfone. Logicamente, não ouço o que ele diz, pois suas palavras são abafadas pelo agito da torcida e pela narração da partida. Isso mesmo, esqueci de dizer, afinal, não poderia faltar a figura do narrador, acompanhado de comentarista e tudo mais, para não perder em nada para os maiores confrontos futebolísticos. Sinceramente, acho até que esta torcida aqui é mais entusiasmada e apaixonada do que muitas por aí nos campos de futebol...
Sabe o que foi que eu fiz no meio disto tudo? Entrei na onda! Tentei entender o máximo que pude com o meu cérebro Atariano, estacionado nos videogames dos anos 80. Perguntei algumas coisas para o meu filho... A nossa torcida era para os coreanos. Aí então ele disse assim: “Pai, quando eu avisar, você dá aquele assobio!”.
FFFIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIUUUUUU
Não basta ser pai, tem que participar.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

MEU MODO DE VER O MUNDO – PARTE 5; AS LEIS DA FÍSICA

            Sempre acreditei nas leis da física. Até aquele momento, acreditei...
            Estava voltando pela Av. do Estado, eu e minha filha no carro. Era noite e chovia fino. Fui pegá-la em uma festa de aniversário, onde estava com os amigos em uma churrascaria. Ao passarmos por dois faróis em sequência, quase caí novamente na mesma armadilha. Há um bom tempo atrás, neste mesmo lugar, acabei tomando uma bela multa. É aquele velho golpe dos faróis defasados e bastante próximos. O primeiro está quase fechando e te obriga a acelerar um pouco. Aí vem o segundo, sorrateiro, que se apresenta com uma enorme luz vermelha na sua frente, quando praticamente não há como parar. E, para completar a cena, a câmera de fiscalização não deixa por menos... Ah, mas desta vez eu fui esperto. Já estava vacinado. Passei pelo primeiro já sabendo que o segundo iria fechar e que não daria tempo. Assim sendo, preparei-me para a freada, que não foi brusca, mas sim na intensidade exata para parar o carro no ponto certo.
Tão logo paramos, veio o estrondo.
O impacto na traseira chacoalhou-nos com violência. No mesmo instante, minha filha começou a chorar. Procurei tranquilizá-la. Apesar da batida forte, logo se percebia que, felizmente, nenhum dano físico nos havia acontecido. Sem machucados, graças a Deus.
A experiência de vida, de outras batidas do mesmo tipo, logo fez surgir em minha mente as seguintes palavras ou cenas: grande amassada, guincho, polícia, BO, seguro do carro...
Desci do carro já preparado psicologicamente para ver aquele desastre de latas contorcidas.
Nada. Não encontrei nada. Olhei a traseira de perfil, procurando algum afundamento. Zero. Eu, que sou detalhista e que costumo achar pelo em ovo, não percebi nenhuma alteração. A coisa ficou ainda mais difícil de explicar quando notei o tamanho do carro que colidiu com o meu. Era gigante. Uma picape, dessas que impressionam pelo porte.
O sujeito logo desceu para conversar comigo. Disse que quem estava dirigindo era ela. Olhei para o banco do motorista e vi uma senhora, paralisada, sem ação. A inspeção que fizemos nos veículos mostrou que o dele, por mais incrível que possa parecer, foi o mais afetado. Algo ficou solto e meio pendurado, na altura da placa. Quanto ao meu carro, acabei encontrando um pequeno sinal... Apenas um centímetro, como se fosse uma unhada, que mal atingiu a pintura. Mas foi tão insignificante que perdeu, em visibilidade, para um leve risco que há no para-choque, provavelmente adquirido por um esbarrão de algum outro veículo enquanto o meu estava estacionado...
Ele me deu o seu cartão. Pediu-me o telefone. Trocamos nossos dados, mas eu sabia que não nos falaríamos depois. Não havia porquê.
Entrei no carro e seguimos para casa. Quanto às explicações, deixarei para você, leitor. Alguns diriam que se trata de algo sobrenatural, divino, a “mão de Deus”... Outros procurariam explicar dizendo que foi porque calhou de bater justamente em um ponto de maior resistência, no ângulo certo... Quanto a mim, estou surpreso até agora. E escrevo justamente para perpetuar esta surpresa e dividi-la contigo.
Só sei que, depois deste incidente, não mais acredito nas leis da física como antigamente...