domingo, 11 de agosto de 2013

Eu, Bob


Tudo começou em uma sexta-feira. Não comi nada da ração. Também não bebi nada. Jejum completo.
Somos em seis e moramos em uma casa espaçosa. O pai, a mãe, o filho, a filha (todos estes humanos), uma porquinha-da índia e eu, um cachorro. Eu disse que a casa é espaçosa, mas só conheço parte dela, pois não subo escadas. Porém, mesmo sem escalar aqueles medonhos e imprevisíveis degraus, mesmo sem saber o que tem lá pra cima, dá pra deduzir que a residência é bem grande. O lugar que ocupo, o canil, também é amplo. Enquanto muitos cães, em outras casas, ficam apertados em um canto qualquer, o meu espaço é bastante privilegiado. Casa de blocos com telhas onduladas, quintal cimentado entre os canteiros, cerca de madeira com grade de arame, portãozinho...
Então, como estava dizendo, naquela sexta-feira eu não comi e nem bebi nada. Estava tudo travado. Também as minhas necessidades ficaram prejudicadas. Quanto à parte sólida, nada fiz. E a parte líquida, logo de início comecei a urinar bem menos. Fazia força, fazia pouco, e sempre com vontade. Espalhei pingos de xixi por todo o quintal. Estava doendo também. Tinha alguma coisa errada com as minhas “partes baixas”. Só perceberam o meu jejum absoluto quando já era tarde da noite, pois acho que aquele foi um dia corrido para a família... Toda noite o pai costuma recolher meu cocô e jogar água no xixi, mas naquela sexta-feira ele não limpou. Quando entrou no quintal, foi ver as tigelas e, ao notar que estavam cheias, exclamou: “Nossa Bob, você não comeu nada!”. Saiu com a cara preocupada.
No dia seguinte apareceu a veterinária. Quando ouviu o que a mãe e o pai disseram a meu respeito, que eu não havia comido e nem bebido nada, que estava fazendo xixi de pouquinho em pouquinho e, principalmente, quando viu a força que eu fiz para urinar, ela falou que era infecção urinária. Disse que me passaria remédio e, se eu não melhorasse, teriam que me levar para fazer um tal de ultrassom.
Neste mesmo dia começaram a me dar remédio. Mas não deu muito certo não. Primeiro tentaram colocar o comprimido dentro de uma coisa que parecia, no gosto, a ração que comia todo dia. Na aparência, era bem maior que um grão de ração. Estava na cara que tinha algo dentro. Até aí não havia problema algum, pois se eu não estivesse doente, engoliria o negócio num instante. Sempre fui de comer bem e de uma vez só. Porém naqueles dias minha fome acabou. Então eles colocaram o remédio em coisas gostosas, para me atrair. Começou com quibe, mas acabei aprendendo a separar o remédio e comer só a carne, então partiram para o frango. Com ele ficava muito mais difícil de separar, porque o danado é gostoso demais. Quando a gente (força de expressão) vai ver, já engoliu...
No domingo estava um pouco melhor. Pouca coisa. Comi um tantinho mais que nada. Quanto a beber, era nada mesmo, pois estava cismado com a água. Se estava dolorido e difícil de ela sair, pra que colocar mais água pra dentro?
Na terça-feira travou total. Não saía nada, nem gotinhas. E a dor, então, aumentou ainda mais. No final da tarde, colocaram-me no quintal lateral. Logo percebi que estavam esperando o pai. A casa estava cheia. A vó, a tia e a prima vieram me ver. Estavam todos preocupados comigo.
Já fazia um bom tempo que havia escurecido, quando o pai chegou, apressado. Mal entrou e já foi me colocando a correia na coleira. Abriu a porta do meio e então apareceu o porta-malas aberto do carro. Oh, não! A última vez que entrei aí dentro foi... Mas não deu nem tempo de lembrar direito daquele apuro danado, pois o pai já foi me pegando e colocando lá pra dentro. Sou um cachorro de médio para grande porte e também pesado. Acho que não foi fácil pra ele encarar o peso. Porém foi melhor assim, meio que no susto. Se me deixassem parar para pensar, aí então eu travaria e quero ver alguém me colocar no carro...
Como comecei a dizer, daquela última vez que havia entrado no porta-malas (que também foi a primeira), foi simplesmente terrível. Levaram-me para a casa da tia. Acho que havia alguma festa por lá, pois ouvi o barulho. Pelo que percebi era a festa da minha prima, uma cachorra pequenina e bem peluda. Mas quem disse que eu saí de lá de dentro? Quando eu subi no carro não percebi a altura estratosférica em que fui me meter... (quem disse que cachorro não é inteligente o bastante para utilizar a palavra “estratosférica”?) Fiquei a festa toda no porta-malas. Com dó de mim, vieram me dar o bolo de aniversário. Estava bom pra cachorro (no sentido figurado e no real também...). Disseram que era só eu descer que tinha mais para mim. Mas eu não quis nem saber. Só fui descer em casa, depois de muito sofrimento. Foi tanta coisa que tentaram pra me tirar dali... Mas não vou contar porque tudo isso, todos estes acontecimentos pertencem a outra estória. Então fica para outra, pois desta vez não me levariam para festa nenhuma. Muito pelo contrário.
Depois de um trajeto curto, mais perto que a casa da tia, o carro estacionou. O pai e a mãe agiram rápido. Botaram-me pra fora, meio empurrado, meio carregado. Receavam que o meu medo aumentasse, pois aí, com certeza, dificultaria muito as coisas. Já desci preso pela coleira e então percebi que estava em um pequeno estacionamento. Logo adiante havia a entrada do prédio, e foi para lá que me levaram. Assim que entramos, eis que aconteceu o meu primeiro contato com um elevador. A mãe apertou um botão na parede e abriu-se uma porta diante de nós. Não tenho medo de dizer, sou um cachorro medroso. Acho que já deu para perceber. Mas outra vez o pai foi mais rápido que o meu medo. Puxou-me pela coleira e de repente estava naquela casinha. Na verdade, um “casão”, bem mais alta que a minha. Também era mais espaçosa. Outro botão apertado e a porta fechou-se. Ficamos um tempinho lá dentro. Deu umas balançadas e, depois de um pequeno tranco, a porta abriu novamente. Ao sairmos, nos dividimos. A mãe ficou em um balcão e nós seguimos adiante, onde havia várias cadeiras, e lá ficamos. O pai sentado em uma delas e eu ao seu lado.
Aquilo era um hospital. Não passei bons momentos nesse lugar. Várias vezes ali voltei, mas nenhuma delas foi tão ruim quanto esta primeira. Pensei que nunca mais sairia dali. Começou com uma consulta normal. Mas para mim não foi algo tão normal assim. Estava acostumado com consultas feitas em casa, sem precisar subir em mesas enormes. Carregaram-me lá pra cima e me seguraram, enquanto a veterinária me examinava. Depois de me apalpar, disse que eu estava com dor. Até aí, nenhuma grande descoberta. Se eu pudesse falar, da minha dor era a primeira coisa que falaria. Após as inconvenientes invasões daquele abusado exame, por cima, cutucando o meu ouvido, por baixo, enfiando-me uma coisa que depois soube que se tratava de um instrumento chamado termômetro, finalmente me tiraram daquela altura gigantesca. Tenho medo de altura, sim. É um dos meus maiores medos. Não gosto de subir em nada que esteja acima do chão, principalmente se é algo que não conheço. Naquela mesma primeira noite de hospital, colocaram-me diante de uma balança. Não era muito alta. Para falar a verdade, já havia, em minhas caminhadas, subido degraus maiores na calçada. Mas se não fosse o pai ter aplicado novamente a técnica do “meio empurrado, meio carregado”, com certeza eu lá estaria até agora, estacionado em frente da balança.
Depois de me pesarem, levaram-me de volta ao consultório. Então a doutora disse que eu teria que fazer um tal de Raio X. Eta exame danado de ruim! Primeiro porque não pude entrar com o pai e nem com a mãe, que ficaram lá fora, esperando. Dentro de um lugar meio escuro, apertaram-me de tudo quanto é lado. Seguraram-me de um jeito que eu fiquei travado. Acho até que me prenderam com uns cintos, mas eu não tenho certeza. Só sei que deu um desespero tremendo. Ainda bem que durou pouco!
Outra vez no consultório, a veterinária mostrou-nos o resultado. Pegou a foto que tiraram de dentro de mim e, colocando-a sobre uma luz que acendeu na parede, apontou para várias pedras e foi contando... Disse que havia umas treze na bexiga. “Ah! Então é por isso que eu estou deste jeito, com essa dor ferrada”, pensei. “Poxa! Como elas foram parar aí? Não me lembro de ter comido pedra... Sabonete eu até comi (depois vomitei; não foi boa coisa), mas pedra, acho que não”.
Quando a doutora disse a palavra “cirurgia”, notei que as expressões do pai e da mãe foram cobertas por um véu de apreensão... Todo mundo sabe que cachorro é um bicho sensível, que percebe facilmente os sentimentos dos seres humanos. O pai me olhava com uma cara de dó que não precisava nem dizer nada. O rosto da mãe era uma preocupação só.
A última vez que vi alguém da família naquela primeira noite de hospital foi quando o pai se despediu de mim. Colocaram-me em uma gaiola pequena e ele, do lado de fora, repetiu um milhão de vezes que tudo ia ficar bem e que no dia seguinte voltaria para me ver. Mas sua cara estava preocupada e dizia muitas outras coisas...
Esta estória está ficando um tanto longa. Acho que sou um cão bastante abusado ao tentar prender a atenção dos humanos com uma narração tão prolongada. O que as pessoas esperam de um cachorro são reações rápidas, coisas breves, como, por exemplo, pegar bolinha ou abanar o rabo contente quando o dono chega. Assim sendo, vou procurar resumir os acontecimentos, passando somente pelos principais, aqueles que eu não posso deixar de contar.
Quanto à cirurgia, recuperação e aqueles intermináveis dias de hospital, não tenho quase nada a mencionar. Cirurgia, ninguém se lembra. Homem, cachorro, qualquer animal, todo mundo apaga. E depois, a prisão. Eu e outros cães, todos encarcerados em cubículos engradados, empilhados uns sobre os outros. Não posso dizer que é desumano porque o termo não se aplica à minha espécie. E ainda ouvi, de um colega de cela ao lado, que estávamos em um hospital de primeira linha, bem melhor que muitos hospitais dos humanos. Acho que os homens têm muito a melhorar nesta área... Está certo que havia alguns ali comigo que mal conseguiam levantar a pata. Para estes, tanto fazia estar preso ou não. Mas havia outros, como eu, que estavam bem e que queriam sair logo dali. Foi por isso que eu fiquei muito bravo quando, no dia seguinte após a cirurgia, apareceu a mãe. Achei que me traria de volta, mas logo percebi que estava enganado. Fiquei revoltado. Quando foi me fazer um carinho na cabeça, não aguentei. Quase peguei a mão dela com uma abocanhada. É lógico que não machuquei, não seria capaz disso. Só queria dar um susto.
Finalmente acabei saindo. Ufa, não estava aguentando mais! Não que o tratamento fosse ruim. Pelo contrário. Cuidaram bem de mim, levaram-me até passear, dar uma volta. O problema é que hospital é lugar nada agradável... Quando o doutor estava dando a minha alta, com todos nós no consultório, disse que eu era um cachorro tranquilo e bonzinho. Gostei do elogio. Vi que o pai e a mãe também gostaram. Mas notei, não conseguiram esconder perante a percepção aguçada de um cão, que ficaram surpresos. Acho que não acreditaram no “tranquilo”, sabem que eu não sou bem assim... Mas é que quando a gente está fora de casa, tenta se comportar melhor. Enfim, parece que consegui enganar bem...
Ficar doente, passar por dificuldades de saúde, como eu passei, tem suas vantagens. Por vários dias fiquei no quintal lateral, onde a mãe estende a roupa. Junto a este quintal, há um corredor que vai até à porta do meio, passagem para a garagem, e até à porta da sala também. Colocaram uma madeira para impedir que eu chegasse nestas portas, e assim ganhei mais este corredor dentro do meu espaço autorizado. Era uma boa área para andar e xeretar e, principalmente, ficava bem ao lado da família. Dava até para ver a cozinha de perto, meu lugar preferido, de onde partem os cheiros mais incríveis. De noite me colocavam para dentro, em outro corredor, que passa ao lado da cozinha.
Logo que cheguei do hospital, percebi que a ração mudou. Não gostei nada do sabor. Também não estava com muita fome. Acho que era por causa da tal cirurgia. Bem que poderiam me dar aquelas coisas que eles comiam. Meu olfato de cão se maravilhava com aquele festival de odores. E havia também um outro festival, não tão agradável quanto este. Lá embaixo, onde abriram e tiraram as minhas pedras, estava pingando algo... A doutora disse que era normal, iria pingar mesmo, pois o corte estaria purgando, sarando. Mas o problema é que não estava sarando não. Comecei a sentir um peso no saco (você acha que um cachorro utilizaria a palavra escroto, saco escrotal ou testículos? Lógico que não! Conheço todos estes termos, mas não pegaria bem utilizá-los. Afinal, um vira-lata não tem nada disso. Tem saco mesmo!). O dito cujo ficou inchado pra caramba, parecia que iria estourar! Quem primeiro percebeu esta minha anomalia foi a filha...
E lá vamos nós, novamente, para o hospital. Toda noite me levavam para lá. Uma injeção por dia. Acho que foi umas sete vezes. Nesse vai-e-vem, acabei aprendendo a andar de carro. No final, quando era para sair, já estava pulando para fora do porta-malas!
Destes “passeios” para levar a minha picada diária, tenho duas coisas a comentar. A primeira é que o medo que tenho dos meus semelhantes continuou o mesmo, ou até piorou. Em uma das ocasiões em que aguardava minha vez, ao lado do pai e da mãe, que estavam sentados em duas das muitas cadeiras da área de espera, ouvimos alguém chamar pelo meu nome. A gente se sente importante. Chamam os animais, e não as pessoas. Então o pai levantou-se e puxou-me pela correia da coleira. Naquela noite havia muitos cães no hospital e isso me estressa. A maioria deles late por qualquer coisa. Quando estávamos bem em frente das fileiras de cadeiras, expostos para toda aquela plateia de cachorros e seus respectivos donos, os latidos aumentaram sendo que um deles, em particular, me fez tremer na base. Sentei e travei totalmente. Não conseguia mover um músculo sequer. Mas foi tudo muito rápido. O pai estava atento e não deixou a minha travada ganhar força. Já foi logo puxando e até me arrastou um pouco. Foi-que-foi que acabou conseguindo fazer com que eu, de alguma maneira, chegasse ao consultório. Fico chateado com esta minha reação, percebo que o pai se envergonha bastante ao ver um cachorrão do meu tamanho, paralisado pelo pânico quando ouve algum latido mais alto ou estridente, mesmo que venha do mais minúsculo cão. Mas o que eu posso fazer? Não consigo controlar. É mais forte que eu...
A segunda coisa que fiquei de contar é sobre os nomes de cachorro que a gente ouve chamar lá no hospital. Veja só: Cocada. Outro: Coca-Cola. Esse é pior: Gonçalves. O enfermeiro até deixou escapar uma risadinha quando foi chamar esse nome. O pessoal inventa cada uma!
Ah, tem mais outra coisa que eu não posso esquecer de contar sobre esse período em que estava me recuperando. Aconteceu algo maravilhoso naqueles dias. Deixaram de me dar a ração, que eu não estava nada disposto a comer, para colocar, no seu lugar, canja! Santa canja! Não dava nem para acreditar, era simplesmente delicioso! Metia a cara no potinho e papava tudo de uma vez, sem tirar o focinho de lá de dentro. A ideia de me alimentar assim tão generosamente surgiu devido ao fato de que eu havia perdido um peso considerável. Quem pensou nesta divina solução foi a veterinária do hospital. Até que ela é legalzinha. Quando me levavam para tomar as injeções, em uma das vezes ela chegou até a me chamar de príncipe. Confesso que a primeira impressão que tive a seu respeito não foi das melhores. De vez em quando cismo com alguma pessoa. Mas acho que desta vez me enganei. Até me arrependo da avançada que lhe dei. Também, logo de começo já foi querendo passar a mão na minha cabeça. É lógico que eu não machuquei. Sou da paz. Um grunhido e uma ameaçada de abocanhada básica, só para marcar o meu território. Coisa de animal mesmo. Acho que foi por isso que ela disse para o pai e para a mãe que eu sou traiçoeiro...
É... Assim está bom... Pra quem não queria se alongar muito... Dei uma de cachorro abusado mesmo! Mas é que não deu para resumir, bem que eu tentei, mas não dava. Tem coisa que a gente não pode dizer assim por cima... Sabe, gostei deste negócio de contar coisas. Bem que poderia dar um livro! Não tem aquele livro que acabou virando filme? Como é mesmo o nome? “Marley e eu”, acho que é isso. Naquele, quem conta a estória é o dono do cão. No meu, é o próprio cão. Bem melhor assim, não acha? “Eu, Bob”, ficou bom?