sexta-feira, 25 de abril de 2014

HACKER DO ALÉM

Último vagão do metrô. Linha amarela. Volta do serviço. Olhos grudados nas telas dos celulares. Muitos. Muitos olhos. Muitos celulares. Parece que há mais celulares do que olhos. Então começou. Tinha que começar com alguém. O jovem estranha. Uma tela branca aparece em seu celular. Em poucos segundos manipula o aparelho de mil maneiras possíveis e impossíveis. Angustia-se. A tela branca não desaparece. Crise de abstinência. Ele vai ficar cinco minutos desconectado! Durante todo o dia estivera conectado, utilizando, principalmente, a rede social. Este vício, em breve, lhe custaria o emprego. Mas talvez a tela branca surta algum resultado... Ele foi o primeiro.
O segundo também era jovem. Aconteceu naquela mesma noite. Na verdade, já era madrugada. A tela branca surgiu quando ele estava no meio de uma partida, no ponto mais crucial do jogo. Deu um murro na mesa. Gritou. Desesperou-se. Tudo travado. Nem conseguia avisar os colegas de equipe. Justamente agora, quando subiria de nível. Assim como o primeiro, tentou escapar da tela branca, também de mil maneiras possíveis e impossíveis, sem sucesso. E foi dormir, arrebatado pelo sono que chegou de repente. Após mais de quatorze horas ligado na tela do computador, lá estava ele, largado na cama, dormindo profundamente, enquanto a tela branca insistia em permanecer no monitor.
E assim, esta estranha interferência, vinda sabe-se lá de onde ou de quem, alastrou-se rapidamente. No terceiro dia, a misteriosa tela branca já era notícia nas redes de televisão. Falava-se muito, também, dentro da internet, isto quando o próprio assunto comentado – a tela branca – permitia...
Inicialmente supunha-se tratar-se somente de um simples vírus. Lógico, não tão simples assim, pelo seu impacto e extensão, mas ainda um vírus. Porém, logo os especialistas anunciaram que não era possível identificar vírus algum. Completo mistério. Mas os especialistas, os melhores do mundo, continuariam tentando...
Começaram a surgir teorias para tentar explicar o que, para a lógica da informática, não tinha explicação. Quando percebeu-se que os alvos da tela branca eram somente aqueles mais aficionados no mundo virtual, começou-se a falar no tal “Hacker do Além”, que seria uma espécie de intervenção divina, encarregada de policiar o uso dos que abusavam...
Hacker do Além, era só nisto que se falava... E ele se tornou ainda mais o centro das atenções quando a tela branca deixou de aparecer para, no seu lugar, surgirem avisos do tipo:
– Largue o computador! Vá à geladeira e pegue uma fruta!
– Mexa-se! Vá até a sala, conversar com sua esposa!
– Chega de rede social por hoje! Saia de verdade com os amigos!
E assim, tão misteriosamente como surgiram, acabaram desaparecendo os ataques ou invasões do Hacker do Além. De saldo positivo, o primeiro jovem mudou um pouco o seu comportamento e está conseguindo manter o seu emprego, o segundo jovem já não fica tantas horas pregado no computador, e “algumas” outras boas mudanças, aqui ou acolá...
Hacker do Além, muito obrigado! Nossa “sociedade virtualizada” agradece. Volte quando quiser!

sábado, 12 de abril de 2014

AS INVENÇÕES DO MEU PAI

Tudo que meu pai inventou, bem que daria um livro que, com certeza, teria que ser ilustrado. Pois como faria, sem imagens, para descrever como ficou aquele carro, modelo Maverick, transformado em anfíbio? Sua missão era transportar os moradores do bairro Prosperidade que, naquela época, sujeito à força das enchentes, por muitas vezes virava uma ilha. Ilha Prosperidade...
Lá embaixo o chassi do Maverick, escondido por um tablado de madeira (o convés do navio) que, por sua vez, repousava sobre 13 grandes tambores, cuja finalidade era garantir a flutuação. Em poucas palavras, era assim.
E ficará assim mesmo, com poucas palavras, a descrição desta invenção do meu pai. Isto porque eu, o filho do inventor, inventei uma nova regra para aplicar aos textos deste blog: nenhum deles poderá ter mais que 500 palavras. Tudo em prol do dinamismo apressado de hoje em dia que rejeita textos que não sejam curtos. Assim sendo, as muitas invenções do meu pai terão que ser resumidas. Mas ele (o meu pai) vai gostar bastante disto, contar sobre suas criações em rápidas palavras, pois ele mesmo é um apressado de primeira.
Então vamos lá. Tem a plataforma de pesca, flutuante, feito grande barco redondo, repartida em pequenas suítes que, no formato de fatias de pizza, abrigariam os pescadores e suas famílias ou acompanhantes, fazendo que tudo isto virasse algo que pudesse ser classificado como “plataforma de pesca e hotel flutuante”. Não foi construída, pois o investimento seria muito alto, mas o protótipo sim, foi concretizado, com estrutura básica de concreto mesmo, uma pesadíssima peça com o seu mais de metro de diâmetro e suas dezenas de quilos...
Muitas vezes, o meu pai procura reinventar, da sua maneira, algo que já foi inventado. Foi assim com o aquecedor solar. Sua versão caseira começou mais simples e foi incrementada aos poucos. Inicialmente era somente um encanamento, exposto ao sol e pintado de preto, que dava várias voltas, sobre a laje da lavanderia, antes de entrar para o forro da casa e ligar-se com a parte hidráulica. Com o passar do tempo, esta sua criação foi adquirindo um maior grau de complexidade. Construiu uma câmara de aquecimento, que era um compartimento fechado e coberto por um telhado de vidro, dentro do qual serpenteava o cano que conduzia a água a ser aquecida. Não me lembro muito bem, tenho cenas e sequências de acontecimentos que poderão não condizer com a verdade. Então aqui vai: papel alumínio envolvendo o cano, isopor na base, reservatório d’água sob a serpente de canos, água aquecendo demais, abandono da câmara de aquecimento, abandono do reservatório d’água, volta aos canos pretos sobre a laje da lavanderia...
É isso, pessoal. O texto acaba por aqui, mas as invenções do meu pai não. É material para um livro mesmo... Um livro longo e criativo, como a vida de meu pai, com seus 90 anos, e que promete ainda muitas outras invenções, se Deus quiser.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

SÃO SILVESTRE 2022

Está chovendo. Incontáveis corpos molhados cobrem a avenida nos primeiros minutos de corrida.
Ele está no meio do pelotão geral, com o número 3636 na camiseta. De repente começa a correr mais que todos ao seu lado. Caça espaços vazios no mar de gente, que o olha com pensamento único: “Esse aí quer chegar lá na frente para ter o seu momento de glória... Vai se matar para conseguir ficar alguns instantes entre as estrelas, torcer para que a TV capte sua imagem, para depois largar a prova, exausto”.
Depois de poucos minutos já alcança o primeiro pelotão. Corre. Terceiro lugar! Corre. Segundo!! Corre. Primeiro!!!
Narradores e comentaristas esportivos explicam para os telespectadores que se trata, simplesmente, de um oportunista que quer aparecer. Mas depois, ao verem que, por quinze minutos, o sujeito consegue não só manter a dianteira, como ainda vai aumentando a distância para o segundo colocado, aí então os especialistas já não sabem mais o que dizer.
O fim da prova se aproxima. O do misterioso corredor também...
Todos sabem o que lhe aconteceu. Afinal, a imagem do seu corpo caindo, logo após cruzar a linha de chegada em primeiro lugar, foi exaustivamente repetida nos últimos dias... Não espere você, leitor, que eu vá aqui revelar alguma informação deste incompreensível acontecimento, do qual ninguém sabe absolutamente nada.
Eu também nada sei... Muitas coisas foram ditas. Disseram até que ele era um extraterrestre, e que seu corpo está sendo esquadrinhado pelos cientistas... Onde há escassez de dados, campeia a fantasia...
Todo mundo, de uma maneira ou de outra, impressionou-se com esta fantástica e inexplicável ocorrência. E cada um reage a seu modo. Eu quis fazer este texto, esta é a minha reação. E não quero saber de respostas. De onde ele veio, o que ele queria, como ele conseguiu... Nada disto importa. Mesmo porque ninguém foi capaz de responder a nenhuma destas ou outras perguntas.
Ele só queria correr. Só isso.