sábado, 6 de setembro de 2014

MORFEU, NEURÍNIA E JEJUÍNO


Morfeu não dormia. Nunca. Não é força de expressão. Nunca é nunca mesmo.
Neurínia não esquecia nada. Não é força de expressão. Nada é nada mesmo.
As enfermeiras da maternidade, logo no primeiro dia de vida do pequeno Morfeu, notaram que ele não pregava o olho.
A mãe de Neurínia, no exato dia em que a menina completava sete anos de vida, ouviu-a dizer, pela primeira vez: "Mamãe, eu nunca esqueço nada".
Já na maternidade começaram os primeiros exames no bebê que não dormia. Nenhuma explicação. Depois vieram muitos outros. O mistério continuou.
Com a insistência da menina em dizer que nada esquecia, e observando o seu inacreditável desempenho escolar, seus pais resolveram levá-la para os especialistas. Muitas avaliações e exames. Nenhum deles conclusivo.
Nesta mesma época, o menino Morfeu já não era alvo de cansativas investigações médicas. Sem encontrarem utilidade nisto tudo, seus pais resolveram poupá-lo.
Neurínia também ficou livre das intermináveis sondagens dos doutores. Mas isto só aconteceu na adolescência, quando ela se rebelou contra tudo isso. Resolveu esquecer o seu problema... É lógico que "esquecer" foi aqui empregado somente como força de expressão. E, na verdade, este não era dos seus maiores problemas, pois, com o tempo, aprendeu a driblar a mente, para não mergulhar em infinitas lembranças a pressionar seus pensamentos. A técnica era procurar, constantemente, estar no presente, no "aqui-agora". Geralmente funcionava muito bem... De vez em quando até dizia que havia esquecido algo. Era mentira, é lógico. Fazia isso para parecer mais normal.
O bebê que não dormia deu muito trabalho para os pais. Revezavam-se à noite para cuidarem do filho que não desligava nunca. A criança que não dormia deu ainda mais trabalho, pois inventava brincadeiras a qualquer hora do dia ou da noite. O jovem que não dormia aprendeu a não incomodar todo o resto do mundo, que precisava dormir. Ficava boa parte do dia e a totalidade da noite no computador. Para o mundo globalizado, mergulhado na internet, não havia descanso. Morfeu usava as horas da noite e da madrugada para jogar com aqueles que estavam do outro lado do planeta: asiáticos, australianos, europeus orientais... De vez em quando fingia estar com sono. Certa vez, em uma excursão com os amigos da escola, chegou até a simular que estava dormindo. Tudo isto para parecer mais normal.
É lógico que não é a toa que eu estou contando as estórias de Morfeu e Neurínia, cada qual no seu parágrafo, mas que neste se juntam em matrimônio... Conheceram-se no tai-chi-chuam e casaram-se dois anos depois. No ano seguinte nasceu o primeiro filho, Jejuíno.
Na maternidade, o pequenino não queria saber de mamar. O jejum continuou quando foram para casa. Ao completar sete dias de vida e de inanição, seus pais não sabiam o que fazer... Mas, na verdade, sabiam o que estava acontecendo... E, desta maneira, compreendiam que nada poderia ser feito. Olharam-se um para o outro e disseram a frase sem palavras: "Jejuíno não vai comer, nunca comerá.".